A integralidade panteísta não intencional em contraste com o cristianismo brasileiro

Tiago Melo
9 min readMay 26, 2018

Nosso tempo na Índia com uma equipe missionária da JOCUM foi uma das oportunidades que Deus preparou para mudar nossa mentalidade. Como de costume, Deus não faz nada que não tenha implicações transformadoras em muitas dimensões. Chegando no sul da Índia na nossa primeira estadia, a surpresa se deu por conta das muitas imagens, estátuas, adesivos e outras tantas formas de representação religiosa de deuses hindus. Nos ônibus, nas lojas, nas casas, árvores e qualquer plataforma de uso publicitário-religioso tinha um deus e suas oferendas. A religião Hinduísta ao que nos pareceu não é uma forma de se conectar com o divino para as necessidades espirituais somente, mas uma abordagem da vida com seu centro declaradamente religioso.

O panteísmo hindu é a causa de uma integralidade não intencional da religião em relação a vida dos adeptos, afinal de contas, não é possível fugir da realidade divina que há em tudo o que existe, pois todos são partes da divindade e a divindade está em tudo, exatamente por isso é que suas vidas são guiadas pela adoração. Para que seu destino (nessa ou em outra vida) seja bom e agradável diante dos deuses é necessário viver diariamente essa adoração. O Karma também é um elemento usado tanto para sua motivação para uma vida piedosa quanto para seu medo do mau que pode acontecer. O Karma, grosso modo, é a retribuição do universo divino às suas ações e escolhas pessoais, mas por onde andamos é mais comum vermos a explicação do karma bastante ligado a ação dos deuses, como confirma Tanvi Madhusudanan num artigo sobre o assunto:

“A doutrina do karma pode ser usada para explicar todos os eventos da vida de um indivíduo, englobando tanto o bem quanto o mal. Embora karma possa ser usado para atribuir causalidade para todas as situações, as escrituras hindus não exigem seu uso. Portanto, é uma falácia assumir que os hindus constantemente usam karma para descrever cada infortúnio; às vezes eles usam mais causas próximas, como características de personalidade ou raiva divina, e karma é usado para explicar apenas situações particulares.” (Tanvi Madhusudanan, Karma in Hinduism, p. 9. Disponível em: http://fusion.knox.edu/wp-content/uploads/2011/05/Fusion-Issue-One_final.pdf#page=9)

Essa presença da religião de uma forma integral no hinduísta se dá mais na ênfase da adoração constante. Uma vez perguntei a um rapaz indiano que jogava futebol na praia se ele já tinha ido em uma igreja cristã alguma vez já que no estado da Índia que estávamos na primeira estadia não era raro ver uma igreja católica, ele respondeu que não, mas que todos os dias de manhã ia orar e se purificar com seu pai no templo de Hanuman, se não me falha a memória, para começar o dia. As famílias passam para suas gerações futuras alguns deuses para adorarem em sinal de seu compromisso com eles, num tipo de voto familiar pelo favor concedido. Na vida do hindu comum em Varanasi, lugar de nossa segunda estadia, seus cultos matinais são o começo de um novo dia, e a adoração ao redor do Rio Ganges no começo da noite marcam o final dele. Quando precisam de dinheiro recorrem a sua divindade correspondente e quando precisam de cura vão orar ao deus da cura. Quando se trata de misericórdia Ganesha está lá, quando precisam de poder e força Hanuman também está disponível para responder as orações dos hindus. Tudo o que precisam se encontra em alguma divindade conhecida. Mas pra além da adoração em templos o hindu faz com que a sua religião seja parte de todos os aspectos da sua vida. No trabalho, os deuses estão (literalmente em estátuas), e as faculdades levam nos seus logos imagens de deuses. Os políticos tomam decisões baseadas nas tradições do Hinduísmo ou Budismo, até mesmo as perseguições de cristãos em lugares mais extremos da Índia são feitas em nome da religião. Na vida social e no núcleo familiar a obviedade da religião nem é discutida pois estranho seria se não houvesse nenhuma presença religiosa no dia-a-dia das pessoas. É claro que não é como se os indianos que vimos fossem piedosos e vivessem a religião como forma genuína de conexão com seus deuses. É mais fácil crer que a vida religiosa integral (mas não intencional) é a resposta individual de uma cosmovisão panteísta vigente na Índia. Suas relações interpessoais, seu trabalho e religião são banhados pelo panteísmo, e mesmo vazias de significado suas vidas seguem o padrão hindu da natureza divina fazendo parte de uma unidade com toda a realidade existente dando razão para a integração da fé com o resto.

Mas o que o cristianismo brasileiro tem a ver com nossa visita na Índia e essas observações sobre o hinduísmo?

No cristianismo brasileiro, sem me dar o trabalho de fazer separação entre católicos romanos e protestantes, é mais comum vermos uma concepção dualista da vida. O dualismo da natureza e graça advinda do catolicismo medieval (como diria Herman Dooyeweerd em “Raízes da cultura ocidental”) é mais presente que uma vida cristã integral. O culto e a vida com Deus estão na dimensão espiritual e as coisas da terra só importam tanto quanto quando precisam de intervenção divina. A própria ideia de adoração a Deus está intimamente ligada a um louvor congregacional no contexto eclesiástico. Por esse motivo, o trabalho é visto como algo penoso que parece estar distante de honrar a Deus. Os estudos as vezes parecem te afastar da intimidade com Deus. O renovo do cristão brasileiro é o culto dominical onde sua vida se aproxima da realidade transcendente de Deus e a culpa por ter passado toda uma semana sem encontra-lo é aliviada. Somos cristãos sem cosmovisão cristã, dominados por uma mentalidade secularizada que cria barreiras para que a nossa fé em Jesus Cristo se estenda a todos os aspectos da vida que próprio Deus criou. O cristianismo integral é raro porque reivindica uma série de esforços que não estamos dispostos a ter. Uma vida toda dedicada a glorificar a Deus dá mais trabalho do que manter nossa fé na dimensão privada.

Fazemos muitas críticas ao panteísmo hindu, até porque é sabido pelos cristãos que essa cosmovisão não corresponde à verdade e a idolatria dos hindus aos milhões de deuses é um jeito de suprir as necessidades das pessoas e dar forma as falhas humanas produzindo deuses antropomórficos. Mas existe uma ponte com a práxis religiosa hindu com quem podemos aprender bastante. Além do mais, temos a vantagem de ter a moral cristã baseada num Deus que é bom, todo poderoso, compassivo e amoroso, nos dando a condição de viver conforme a distinção de certo e errado provinda de Deus, revelada nas Escrituras. É certo que pra além da moralidade, a vida cristã integral é um desafio, porém o compromisso moral intencional de uma vida baseada na Bíblia mais a devoção a Deus pode nos despertar do nosso sono dogmático dualista.

Valores morais e integralidade: vantagem das Escrituras

De acordo com as minhas leituras e observações (o que não reivindico ser a verdade absoluta) por mais que o panteísmo do hinduísmo gere uma vida de integralidade em relação a religião com o resto das áreas da vida, a vivência de hindus comuns parece já vazia de significado, como se não houvesse impacto transformador, tanto individual como social. Mas o mais importante: o panteísmo não tem condições de oferecer uma moralidade comprometida com a verdade apesar de resultar numa vida integral não intencional. Os valores morais do hinduísmo são baseados em deuses que pecam, traem suas esposas, matam outros deuses por rivalidades, são orgulhosos em seu coração e como Shiva chegam a cortam a cabeça de seu filho desconhecido. Além do mais, alguns deuses trabalham como aliados de anjos e de demônios, pois o bom e o mau são conceitos criados:

“A filosofia religiosa da Índia ensina que a alma humana é divina, e sendo assim ela não peca. Na verdade, nossa filosofia religiosa mais rigorosa ensina que tudo é deus. Deus é a única realidade que existe e, portanto não há distinção final entre bem e mal, o certo e o errado.” (Vishal Mangalwadi, Verdade e Transformação, p. 33)

Sem o pressuposto do valor intrínseco dos humanos como criação prima de Deus, por exemplo, os hindus estão perdidos em sua própria avaliação do que é certo e errado fazer nas suas relações interpessoais. Como conta no livro citado acima, Vishal Mangalwadi, indiano cristão que avalia social e religiosamente o ocidente em comparação à Índia, existem famílias e vilas inteiras que dominadas pelo medo das consequências de terem mais de uma filha mulher deixam com que a segunda que nasceu morra de fome pois poderia trazer prejuízo demais para a casa, já que ela precisa ser alimentada e educada para num futuro da-la em casamento que ainda terão de pagar o dote, e julgam não precisar dela em casa já que tem uma primeira filha e a mãe para cumprir os afazeres domésticos.

O próprio Osho Rajneesh, guru indiano que ficou famoso por ir para os Estados Unidos e criar uma comunidade/cidade um tanto polêmica e alternativa no estado de Oregon, disse que o mundo não é nem bom nem mau, a mente é quem cria o mau e quem se tornar perfeito verá o mundo parecer bom. Sendo assim, o hindu indiano, por mais que leve sua vida religiosa a sério, fazendo com que ela esteja presente em todo o resto, não teria os pressupostos que julgamos corretos, mas nos ensinam uma certa coerência com sua moralidade e vida.

O cristão brasileiro é indesculpável quando professa sua fé no Deus Trino e não é transformado em seu compromisso moral diante da vida, pois todos por aqui foram formados em uma nação cuja moralidade (pelo o menos teórica) é cristã. Nosso senso cristão de certo e errado, bom e mau deveria estar essencialmente ligado ao caráter de Deus, revelado nas Escrituras e disseminado no Ocidente principalmente pela herança da Reforma Protestante. O relacionamento com Deus e o contato com as Escrituras são requisitos básicos do que é ser cristão, e por sua vez deveriam necessariamente causar transformações integrais em nós. Entretanto, como na vida dos hindus no caso da integralidade panteísta não intencional, a vida cristã integral se tornou obsoleta devido a distância que mantemos do nosso coração (aqui como o centro das motivações e depósito de nossos tesouros) e a verdade transformadora de Deus. Já não somos mais inteiros para glorificar a Deus porque não sabemos o que é estar com o coração inteiramente em Deus.

O requerimento da fé cristã: integralidade e coerência

“Como prisioneiro no Senhor, rogo-lhes que vivam de maneira digna da vocação que receberam. Sejam completamente humildes e dóceis, e sejam pacientes, suportando uns aos outros com amor. Façam todo o esforço para conservar a unidade do Espírito pelo vínculo da paz. Há um só corpo e um só Espírito, assim como a esperança para a qual vocês foram chamados é uma só; há um só Senhor, uma só fé, um só batismo, um só Deus e Pai de todos, que é sobre todos, por meio de todos e em todos.” (Efésios 4:1–6)

Como Paulo na sua carta aos Efésios fazendo-lhes um requerimento para que vivam de maneira digna com coerência em relação a vocação que receberam de Deus e suas muitas implicações como a unidade com irmãos, o amor, a humildade, paciência, etc., o cristianismo brasileiro precisa ressignificar a vida cristã no objetivo de torna-la integral. A verdade, disse Jesus, nos libertará quando a conhecermos. Sendo assim, há incoerência no nosso cristianismo quando nos declaramos cristãos sem ao menos termos sido transformados pela verdade de Deus no relacionamento com ele. A moralidade bíblica não encontra respaldo em nossa vivência, e quando muito, encontra de forma vazia, como hindus que mesmo religiosos em sua práxis estão vazios de significado, porque nossa moralidade não foi fruto de uma vida integralmente cristã.

Por fim, uma boa lição dos hindus eu aprendi: não podemos falar que estamos com Deus se ele mesmo não é a razão da nossa vida. A coerência e integralidade hinduísta, mesmo com suas dificuldades ontológicas, carregam a verdade de que se o Deus do cristianismo brasileiro é o mesmo da bíblia, por ser o verdadeiro Deus requer nossa vida de forma integral pra sua glória.

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*Vale ressaltar que esse texto é fruto da observação e algumas leituras e não corresponde com uma versão generalizada da religião Hindu e o comportamento religioso de todos os hinduístas como se isso fosse possível.

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Tiago Melo

Quase doutor em Ciências da Religião, autor do livro Neocalvinismo e teólogo nas horas vagas.