Caímos do cavalo.

Ou, como o COVID-19 nos lembrou o que é o ser humano.

Tiago Melo
5 min readMar 21, 2020

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A ilusão humana da autossuficiência e sua fragilidade existencial.

Fazia tempo que nós estávamos sob efeito da droga que causa a bonita ilusão de que o ser humano e suas fixas dinâmicas da vida não seriam abaladas devido a todos os empreendimentos alcançados até aqui na história. Parecia que, apesar das catástrofes naturais que presenciamos nos últimos dois anos, a humanidade não sofreria um impacto grande o bastante para desestabilizar sua segurança de si mesmo. Se pensarmos em como guiamos nossa existência nessa terra, constataremos sem muito esforço que não colocamos nossa aparente suficiência em xeque. O contrário me parece verdadeiro: as dinâmicas diárias da vida são movidas dogmaticamente pela certeza de que a humanidade carrega consigo a dádiva de sua própria soberania. Essa droga tem nome: a pretensa autonomia humana. Os seus efeitos ilusórios também são bastante conhecidos: sensação de autossuficiência, segurança (lê-se fé) na capacidade científica (sou pró-ciência até o talo), sentimento de garantia da vida — dormimos diariamente acreditando piamente que acordaremos no próximo dia — entre outras que você mesmo pode identificar.

O fato é: o COVID-19 chegou. O vírus anda causando medo numa porção de gente, e não é à toa, o bicho é perigoso. O fenômeno de pânico não está acontecendo regionalmente, como se fosse um problema de um povo inferior sem os recursos que pudessem impedir, mas mundialmente, ganhando os trend topics do imaginário popular de (quase) todas as pessoas do globo. Esse vírus, até há pouco nem era conhecido fora da China, porém rapidamente ganhou notoriedade quando o número de infectados aumentou drasticamente. Ele viajou e infectou centenas e milhares na Europa, e depois não parou mais. Chegou até nós, os BR. O número de casos no mundo passou de 580 ao final de janeiro, para 270.000 (20/03/20). Não é brincadeira, estamos realmente vivendo um momento de extrema atenção para a saúde internacional.

O Corona (apelidado de Coronga pelos brasileiros, que tem talento para produção de memes) não chegou somente ao sistema biológico das pessoas ao redor de todo o mundo, mas afetou todas as dinâmicas sociais que nem são percebidas por nós de tão automáticas que se tornaram. Assim, tanto os sistemas financeiros, os círculos sociais, os encontros religiosos, a comunidade política e até a vida familiar foram todos impactados com o advento e contaminação do COVID-19. Nosso cotidiano simples e aparentemente estático ganhou o status de proibido: não podemos ir mais ao local de trabalho, não podemos tomar aula na universidade, nem visitar a família em outro estado, ver os amigos na sexta a noite, muito menos curtir um bom filme no cinema na segunda-feira promocional. Os planos, eventos, ideias e projetos agora devem ser adiados ou cancelados. A realidade parece ter sido bagunçada quando separada da ordem social previamente estabelecida. O sociólogo Peter Berger argumenta que existem certos acontecimentos que causam nas pessoas uma anomia, ou seja, a sensação de perda do sentido da vida, que foi adquirido em sociedade (um nomo socialmente estabelecido):

"As circunstâncias de tal ruptura nômica podem, é claro, variar. Poderiam envolver grandes forças coletivas, como a perda de status de todo o grupo social ao qual o indivíduo pertence. Poderiam ser mais estritamente biográficas, como a perda dos outros significativos pela morte, pelo divórcio ou separação física. […] Em ambos os casos, a ordem fundamental em termos da qual o indivíduo pode 'dar sentido' à sua vida e reconhecer a própria identidade, estará em processo de desintegração." (1985, p. 41)

O COVID-19 pode, dentre tantas outras circunstâncias, ser também um fator desestabilizador da nossa segurança no que acreditamos ser a ordem social e individual das coisas. Ou seja, um vírus invisível ao nossos olhos modificou todo o horizonte em que fitamos a visão. Isso tem que significar algo para nós, além de reconhecermos a limitação puramente biológica da humanidade.

Diretor geral da Organização Mundial da Saúde: "A vida está mudando dramaticamente para muitos de nós, mas é importante continuar buscando por saúde física e mental. A OMS fornece conselhos para as pessoas em como se ajustar na nova realidade do COVID-19".

Creio que agora temos uma boa oportunidade de refletir sobre a fragilidade existencial das pessoas. Nesses últimos dias, como não vemos há muito tempo, estamos presenciando um árduo processo global para reorganizar quase que todas as áreas de nossa vida por conta do Corona, mas ainda sim, a realidade de nossa insuficiência parece se impor sob nossa sensação de autonomia e capacidade própria. Não temos em mãos o controle do nosso futuro, e agora que estamos minimamente conscientes disso estamos reconfigurando nossos hábitos a fim de não incorrer no risco de contrair o vírus ou de fazer com que outros o façam, afinal de contas, não queremos perder a chance de continuar tentando virar deuses imortais. Com toda essa situação penso que a menos de um palmo de distância está uma bela oportunidade de aprender! E por incrível que pareça é o vírus nosso professor.

O docente não desejado nos lembrou de verdades fundamentais que não deveriam ser esquecidas: somos pequenos, somos frágeis, vivemos por pouco e ainda sim, delicadamente. Mas não é so o Coronga (quer dizer, Corona, desculpe sou brasileiro) que nos causa essa insegurança, na verdade qualquer coisa pode interromper tudo que tínhamos por certo, fazendo com que a ilusão da nossa autonomia se vá por água abaixo. De fato, se olharmos de perto, é de nossa essência essa insuficiência: precisamos comer e beber água diariamente, caso contrário morreremos. Precisamos nos relacionar, se não enlouquecemos. Precisamos dormir, se quisermos acordar — o ato de dormir é, dentre outras coisas, descansar do esforço braçal da sobrevivência e abrir mão do comando por algumas horas. Assim, não parece que em nada escapamos da finitude, só fingimos não percebe-la. Melhor é encaramos.

O que aprendemos com isso?

Em resumo, que precisamos fazer as pazes com a finitude e insuficiência. De repente a gente até inclui elas na roda dos amigos; a graça de Deus, a paz do Espírito e os relacionamentos profundos unidos pelo o amor da Trindade.

Confesso, sou otimista: acredito que em pouquíssimo tempo teremos uma solução medicamentosa contra o Corona vírus, mas isso pode representar uma nova dose da droga ilusória que estávamos conversando antes.

Mas meu otimismo tem limites: daqui a pouco aparecerá um novo Corona, uma nova catástrofe, um novo fenômeno ou uma simples perda que nos causará anomia novamente. Somos sensíveis ao desconhecido, porque não temos capacidade de conhecer tudo. Se aprendermos a viver com isso, não teremos, pelo o menos, a aspiração de sermos divinos, porque em última instância a morte baterá a porta de todos, inevitavelmente. E não, não viveremos num mundo ciber punk à la Altered Carbon com possibilidade de imortalidade nessa conhecida existência que temos. Morreremos pois somos insuficientes e frágeis, e o COVID-19, assim como a morte, se impõe sob o sonho da autonomia soberana da humanidade. Ele nos lembrou o que somos: criaturas. Assim, para a vida daqui pra frente acho que poderíamos pensar na necessidade de algo mais sólido que nossas pretensões, menos destrutível que nossos impérios, menos fragilizado que a vida, menos instável que a sociedade e claro, mais verdadeiramente Divino.

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Tiago Melo

Quase doutor em Ciências da Religião, autor do livro Neocalvinismo e teólogo nas horas vagas.