O PROBLEMA DAS FONTES

Tiago Melo
6 min readApr 2, 2020

Ou, a tentativa de entender o porque a desconfiança e a conspiração estão tão populares no Brasil.

teve a experiência de beber água e culpar a garrafa na geladeira pelo gosto ruim? Essa experiência, para o propósito aqui, pode ser vista como uma analogia de nossa incapacidade de identificar a fonte na qual estamos buscando informações verdadeiras para basear nossos argumentos e posições, principalmente políticas. Quando colocamos água da torneira na garrafa de vidro e depositamos ela dentro da geladeira, a água não mineral ou filtrada provavelmente não terá mal gosto por outro motivo a não ser a fonte de onde ela veio. Água da torneira nunca será mineral enquanto não passar pelo processo necessário. Informações de fontes não confiáveis nunca poderão ser consideradas verdadeiras se não passarem por uma cuidadosa análise. Água é água, umas com boa qualidade e outras insalubres. Informações não deixam de ser informações, apesar de algumas poderem corresponder mais ou menos com a veracidade das coisas — sim, tendo a acreditar que elas ainda existem em grande quantidade.

Quais são as condições necessárias para tornar uma fonte plausível?

Quando escolhemos o que consideramos ser a interpretação verdadeira dos fatos, também fazemos uma escolha de fontes. Buscamos sempre uma correspondência dos acontecimentos com a melhor maneira de os explicar, mas esta explicação vem de algum lugar. Por exemplo, se quisermos saber o dia o Brasil foi descoberto (ou tomado), temos de procurar nas fontes documentais que descrevem o acontecido. Claro, o olhar do narrador conta. Claro, ele será inevitavelmente "confessional", pois ninguém é neutro, mas ter uma fonte plausível, de quem viu o que aconteceu e descreveu seus detalhes já é alguma coisa— péssimo exemplo o da descoberta, eu sei, acho que já me arrependi dele. Com fins não conclusivas, mas ilustrativas, me parece que ter uma fonte primária ou testemunha já é um passo em direção a busca pela boa água. Mas eis aqui o problema das fontes: quem é que pode descrever de forma confiável qualquer fato que seja, a fim de ser noticiado ou explicado teoricamente? Deixando as questões filosóficas da hermenêutica de lado, e com os pés no chão tupiniquim atual, a resposta bem que poderia ser: quem tem condições técnicas, intelectuais e morais para isso!

Técnicas, porque cada esfera da sociedade exige seus próprios requisitos quando se trata do como fazer e como divulgar, como na ciência é necessário passar pelos critérios metodológicos para ser considerado conhecimento científico, na imprensa é necessário passar pelos moldes da investigação, escrita acessível e formatação chamativa. Por onde batermos o olho se produz exemplos como esses, pois para cada informação séria divulgada existe uma série de requisitos e filtros que ela passou — não sou inocente, mas ando muito confiante na capacidade de produção do verdadeiro pelas pessoas, confesso.

Intelectuais, porque a obtenção de certos conhecimentos é condição sine qua non para a geração de outros. Assim como não podemos interpretar um texto sem saber o que os conjuntos de letras em formatos de palavras e depois orações significam, não se pode construir conhecimento que corresponde à realidade sem compreender um recorte já interpretado por outros (seja insuficientemente, seja erroneamente ou acertadamente). Ignorar que há certa qualificação intelectual para entender de algo, é jogar fora o que até aqui foi construído.

Morais, porque quando algo é pesquisado, analisado e divulgado, certos valores morais são requisitos para o sucesso do produto final. A exemplo, a honestidade intelectual, como um valor moral, é condição importante para informar coisas a respeito de fatos. A verdade, num sentido mais lato, pode ser também compromisso necessário.

Resumidamente, quem tem condições técnicas, intelectuais e morais é, ou deveria ser, voz mais ativa nas dinâmicas sociais sobre certos assuntos. Não estou problematizando nenhum dos aspectos descritos acima, nem teria tempo para isso, mas o ponto central tem a ver com como reconhecemos e diferenciamos as boas informações nas boas fontes, das informações que nem tem condições para ser plausível. Se os grupos familiares de whatsapp compreendessem essas condições, menos correntes de fake news chegariam até você hoje.

A desconfiança e a conspiração se casaram no Brasil

Apesar de ser mais complicado do que posso rastrear e descrever, como já deve ter percebido, o que tem rolado em nossos círculos sociais, quer familiares, trabalhistas ou na amizade, é uma profunda desconfiança quanto às fontes tradicionais (e plausíveis) de informação — não vou mentir, hoje em dia o filtro tem de ser mais sofisticado mesmo, porque tem muito lobo em post de cordeiro. A ciência, a medicina, o jornalismo como um todo, a academia intelectual ou qualquer autoridade social, à essa altura já deve ter sentido o vácuo do silêncio ou os comentários odiosos ao comunicar seus resultados.

Até mesmo as fontes que uma vez foram plausíveis, estão agora completamente descreditadas, uma vez que se mostraram desalinhadas com as convicções individuais. A mente conspiracionista tomou conta das pessoas. A ideia de que o mundo está contra seus aliados e suas convicções ganhou popularidade incontornável. Consequentemente, os que consideram que o mundo está se esforçando para te destruir, elencam uma (no máximo algumas) fontes que dizem "a verdade nua e crua" contra todo o restante do mundo, que por sua vez está bem empenhado em manter o povo cego para propiciar o fim do mundo, a morte de bilhões, ou o sucesso de concentrar o poder em um só lugar em detrimento da autonomia de todo o globo. Já ouviu falar dos Iluminatis? Então, é tudo culpa deles. Mas se bem que pode ser também os reptilianos, que sempre estiveram aqui, afinal de contas. Ou, com destaque e sem sarcasmo, pode ser o resto. Qual resto? O resto, que não sou eu, nem quem concorda comigo. O outro! Nós não, mas o outro é o inimigo.

Essa desconfiança conspiracional (acabei de inventar essa palavra, mas soou bonita) nunca esteve tão em alta. Está nos trending topics do imaginário popular. As pessoas estão preferindo confiar em si mesmas, porque acreditam que tem ideias tão originais e verdadeiras, que todo o restante está simplesmente equivocado, não importa o quão plausível a fonte de informação seja, muito menos as provas — vão dizer que elas são montagens. Quem pensa igual, entra na arca. Quem está em desacordo (não precisa ser grande, basta uma pequena discordância) que morra no dilúvio que será causado por quem manipula o planeta. Desse jeito, o COVID-19 poderia muito bem ganhar o apelido de dilúvio. O comunismo ser o dilúvio para os direitistas e os EUA capitalista para os esquerdistas. A NASA para os terraplanistas, e a vacina para os anti-ciência (ou anti-saúde).

Em resumo, se a informação não vier do meu Noé, não será verdadeira, não importa o quão plausível e aparentemente verdadeira se mostre.

Grande discussão causada no Twitter por conta do repost que Dória fez ao concordar com uma frase de Lula, como se fosse sinônimo de alinhamento político.

A desconfiança das autoridades jornalísticas e científica com as qualificações necessárias pediu à mente conspiracionista em casamento. O casório já foi realizado no Brasil, mas pouca gente ficou sabendo. Apesar de não ser recente o casamento, já experimentamos os efeitos da falta de anticoncepcional: os bolsonaristas, os lulistas, os terraplanistas e os anti-vacinas. Já já esse povo cresce e concebe netos para o primeiro casal: o trabalhador comum nas eleições de 2022, os influencers digitais ou qualquer outros frutos do afeto desse casamento. Isso é de dano inestimável para nossa sociedade.

E por falar do afeto desse casal, vale comentar: não seria somente o valor afetivo passional de uma informação que dê match com as convicções do indivíduo o único critério dele para validar sua veracidade? Em outras palavras, parece que o brasileiro decidiu: alguma coisa só é verdade quando o sujeito com sede encontra o poço que tem pendurado nele um espelho no balde de recolher água. Os requisitos para a plausibilidade das fontes de informações deixaram de ser as qualificações que cada campo exige dos que atuam nele e passaram a ser simplesmente a identificação passional dos que as consomem. Assim, se alguém tiver numa pessoa pública seu poço com espelho, não interessa o quanto pareça contraditório, sempre será mantida a sua convicção de ordem afetiva de que ela é produtora de água limpa.

Bom, não vou me alongar, desculpe. Até aqui já falamos sobre algumas qualificações, que acredito serem necessárias para que pessoas sejam voz ativa e plausível sobre algum assunto. Falamos também que, mesmo que os profissionais do jornalismo, os cientistas, médicos ou especialistas tenham essas qualificações, eles não estão sendo levados a sério no Brasil, pois a desconfiança e a mente conspiracionista já faz parte do imaginário popular. Por fim, acho importante não esquecermos que essa postura que comentamos, para os cristãos, tem nome: idolatria.

Mas isso é o que vou falar na continuação desse texto — ou seria opinião? ou artigo? acho que artigo fica mais bonito. Enfim, espero que leia o resto, que por sinal já estará disponível como outro artigo por aqui quando você acabar esse aqui.

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Tiago Melo

Quase doutor em Ciências da Religião, autor do livro Neocalvinismo e teólogo nas horas vagas.