O PROBLEMA DAS FONTES (parte 2)

Tiago Melo
6 min readApr 7, 2020

Ou, o problema da idolatria, as redes sociais e a necessidade da confiar.

Finalizamos a parte anterior falando que a postura de desconfiança e a mente conspiracionista, onde todos (menos os meus) estão equivocados, não interessando o quão contraditório ou errado possa aparentar em alguns momentos, era no vocabulário cristão chamado de idolatria. A idolatria ignora qualquer plausibilidade que não vem do ídolo. Ela elenca uma autoridade, reconhece os seus derivados, mas nunca dá o braço a torcer, pois seu coração foi cooptado por alguma coisa que pertence ao domínio da criação e que ganhou status de divindade.

A idolatria pressupõe, porém, que fora do ídolo há um verdadeiro Deus que está essencialmente em antítese com outra forma de divindade. Pois bem, creio em Deus, no Cristo das Sagradas Escrituras, e com esse ponto de partida a idolatria pode ser descoberta tão diversa quanto criativa. Irônico é pensar, que para boa parte dos meus irmãos, a idolatria é um conceito já esquecido. Não é sem motivo que a bíblia é instrumento de defesa do terraplanismo, do bolsonarismo, do lulismo e de outras modalidades da idolatria conspiracionista desconfiada.

A idolatria funda um novo mundo imaginário

Em outras palavras, a idolatria acontece quando, alguma coisa de natureza ordinária e imanente, ganha o caráter de divindade absoluta. Em outras palavras de outras palavras, absolutizar algo é ignorar sua natureza de criatura e dar a ele o caráter de criador. Mas por incrível que pareça, esse fenômeno não é exclusivo do trato religioso, pelo contrário, os deuses ocidentais com mais adeptos são imanentes e nasceram em outro campo da sociedade, que não no religioso. Parece que isso já está incrustado na humanidade —parafraseando João Calvino, o coração humano é mesmo uma fábrica de ídolos. No entanto, a consequência na imaginação do fiel criador de divindades ultrapassa sua dimensão religiosa da vida e funda todo um novo mundo imaginário. Um novo mundo onde, o critério para o que é verdadeiro e falso, justo e injusto, belo e feio, bom e ruim, são determinados por quem foi posto no altar. O mais curioso está por vir: apesar de não estar ciente, viver com um ídolo pode ser altamente confortável, pois este está alinhado com seu fiel a níveis muito profundos. Deve ser por esse motivo que terraplanistas não desconfiarão de sua certeza que o planeta é chato (igual eles), assim como bolsonaristas não tecerão críticas relevantes ao seu Messias (só citei o sobrenome viu?!) ou os anti-vacina nunca se livrarão da gripe. Afinal de contas, o ídolo cria um mundo onde seus devaneios são plausíveis. Além disso oferece benefícios para quem deseja arrumar suas malas fazer a migração: uma grande e afetiva comunidade de aceitação formada por semelhantes adoradores. Tipo o ashram do Osho, sabe?

Em resumo, a busca de boas informações será comprometida logo de início, pois todos os campos da sociedade que, com credibilidade construíram seus métodos e formas de comunicação, agora foram consideras heréticas pelo deus popular (ou seria populista?). Por outro lado, ironicamente, nesses mundos imaginários os jornalistas não tem qualquer formação, não preenchem qualificações para serem plausíveis e não possuem veículo midiático institucional, ao invés disso escolheram as redes sociais como fonte de infalibilidade — com ênfase no "zap". Os bots, as correntes, os grupos e as fake news são belos exemplos diários da influência das redes sociais como fonte confiável elencada para obter informações. Não à toa o caso polêmico da contratação da Cambridge Analytica para as votações americanas e para o Brexit, que virou até documentário, fizeram todo o trabalho por meio do facebook e outras redes. Detalhe: não por perfis institucionais somente, mas na maioria, o controle de comportamento era feito com o uso de perfis pessoais fakes ou contratados, tamanha a força desse tipo de veiculação hoje em dia.

Tem muita gente no Brasil vivendo nesses novos mundos imaginários. O mundo onde vivemos, embora sob a lente de diversas interpretações diferentes por parte de diversos grupos — não a ponto de se tornarem distopias idólatras conspiracionistas — , ainda necessita de plausibilidade e qualificação das fontes de informações, que ainda são anunciadas pelo jornalismo mainstream, pela ciência, pelas grandes religiões e por outros campos creditáveis do conhecimento.

A confiança é necessária, mas deve ser qualificada.

Por fim, parece que para buscarmos água limpa para a sede de informações que correspondam mais ou menos com os eventos na realidade devemos aprender a confiar! Sei que a confiança não anda muito na moda, mas vale a pena insistir nela, desde que ela seja qualificada.

A confiança está imprescindivelmente presente em todo o tecido social, ou em outras palavras, no dia a dia não escapamos nem se quisermos da bendita confiança nas relações com pessoas. Pense, como exemplo, em muitas dessas relações interpessoais: ao entregar um relatório no trabalho, pressupõem-se que o patrão confia na capacidade de seu funcionário para colher e analisar os dados para então redigi-lo e entregar. As amizades não são sustentáveis se não se manterem por um vínculo de confiança, seja ao confiar nas palavras que o outro diz, ou nos favores trocados, na promessa feita na esperança de seu cumprimento, etc. Nas relações conjugais nem é preciso mencionar. Pense também em situações do cotidiano: quando vamos a um restaurante, comemos a vontade, conversamos o quanto for necessário e só então efetuamos o pagamento. Há aí, a confiança implícita por parte do dono do estabelecimento de que todos que entrarem pela porta sairão após pagar o que consumiram. Outro bom exemplo é recorrermos a serviços: quando vamos ao médico, confiamos que ele sabe o que nos dizer a partir da evidência dos sintomas, quando chamamos um eletricista, confiamos que ele saberá resolver o problema da fiação — sem ter de fazer uma entrevista prévia para a contratação, apesar de o termos chamado por indicação de alguém, o que revela sua plausibilidade –, ou quando arrumamos o carro na concessionária autorizada, pressupomos que por se tratar de especialistas na marca de nosso veículo, merecem confiança para consertar nosso escapamento barulhento. Enfim, a confiança nos é necessária para a continuação da sociedade, já que esta é produto inescapável de nossas relações.

Com os os propagadores de informações (ou fontes, em nossos termos) não é diferente. A confiança quando é quebrada, assim como é numa relação interpessoal, demora a ser renovada, mas não pode ser excluída. Devemos confiar, pois de qualquer modo o faremos com alguma coisa. O desafio é confiar em fontes que tem condições de serem plausíveis. Isso muda tudo!

A ciência quando erra só faz o seu trabalho (o de ser superada por um novo quadro), mas isso não nos tira a confiança de que cientistas tem o necessário para nos ajudar a discernir informações verdadeiras sobre os acontecimentos desse mundo — tipo sobre o COVID-19, sabe?. Os jornalistas tem suas linhas editoriais (e suas pressuposições filosóficas, é claro), mas isso não invalida a possibilidade de confiar em sua profissionalidade, pelo contrário, só prova e favorece a transparência com seus leitores, oferecendo a eles a chance de não o ler, mas escolher outras emissoras que seja tão plausível quanto, mas com outras linhas editoriais. Inclusive, essa troca de um jornal para outro não deve implicar no desrespeito ou postura de insulto para com a emissora em que discorda. Igualmente, os pastores e outros líderes religiosos com grande visibilidade irão declarar besteiras (das grandes) e incitar a desinformação, mas essas posturas não devem fazer das religiões, em especial a cristã com a sua presença e contribuição social, um alvo de críticas sem critério como se não houvesse plausibilidade nela para confiar em suas declarações e ações.

Ou seja, confiar em meios de obter informação é uma atitude necessária e faremos isso de qualquer forma com algumas fontes. Justamente por esse motivo é que é melhor que o façamos livres da idolatria conspiracionista desconfiada, mas maneira crítica (o bom e velho senso crítico), depositando parcialmente a confiança necessária em fontes que tenham condições técnicas, intelectuais e morais de fornecer pelo o menos algumas gotas de água mineral.

Por fim, agora estamos à caminho da conclusão de verdade, fica a pergunta: afinal de contas, por que você que me aguentou até aqui, e por que deveria acreditar em tudo que eu disse? Por que confiar quando, criticando as redes sociais como fonte da verdade utilizo uma para lhes escrever? Sinceramente, não sei. Parece que, algumas fontes terão de ser analisadas com mais calma mesmo, e esses meus dois artigos são bons exemplos disso. A vantagem é que não tenho um espelho político pendurado no perfil do Medium, e desejo que quem ler tenha uma atitude crítica de análise a fim de ver se tenho condições para afirmar o que afirmei e, principalmente, para que em tempo possa se desidolatrar. Afinal, o Deus verdadeiro não tem mais Messias, pois já se fez conhecido fora de nós, para que nem eu, nem ninguém, o confunda com a gente mesmo.

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Tiago Melo

Quase doutor em Ciências da Religião, autor do livro Neocalvinismo e teólogo nas horas vagas.