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O QUE NÃO DÁ PRA PÔR NO CURRÍCULO

Tiago Melo
8 min readDec 20, 2020

Ou, sobre reconhecer o valor das coisas que estão fora de nosso alcance produtivo.

Correndo o risco de chover no molhado, este ano foi, ao mesmo tempo, estranho (pra não dizer ruim) e surpreendente (pra não dizer bom). No entanto, uma coisa merece ser destacada, ao menos por parte da minha vida e minha bolha — palavra que ficou mais conhecida do que nunca, depois de termos nossas relações tornadas quase que exclusivamente digitais ou reduzidas em encontros pessoais.

[finja ser uma nota de rodapé] O leitor que já perdoe pela forma prolixa, mas intencional da escrita.

O que merece o destaque nesse ano pandêmico é também um paradoxo, que já estava aí, mas que ressaltou aos nossos olhos de forma brutal. Me refiro ao ritmo produtivo, corrido e sem fôlego que nos controla atualmente, mas o desejo profundo, verdadeiro e muitas vezes distante de dar valor às coisas mais importantes da vida. Vivemos como gentios, oramos como santos. Corremos como maratonistas amadores prestes a quebrar seu próprio recorde, ouvindo audiobooks sobre sobre o equilíbrio e contemplação. Pensamos (ao menos eu) na vida como um grande check-list em que a última tarefa não pode ser checkada por nós (mas por quem assinar os documentos funerários), mas desejamos (ao menos 2 vezes ao dia) envelhecer como quem aproveitou a vida.

O primeiro lado da moeda: a vida como um grande currículo a ser exibido ao mundo

No ano de pandemia, o anseio por produtividade não escapou da vida diária, na prática, mas escapou do coração. Começamos a desejar coisas que julgamos mais sublimes, como ficar em casa e aprender a ouvir mais quem mora conosco, ou a não se sentir (tão) culpado por não ter conseguido cumprir todas as tarefas semanais. Mas o fato é que continuamos a produzir. É claro, pra ser justo, tem muita gente que não conseguiu sequer trabalhar, nem estudar, nem se relacionar — ou nem comer– por causa da pandemia. Mas num geral, há patologias (como diria Byung-Chul Han) mais generalizadas do que gostaríamos de admitir. Dentre elas está a produtividade patológica, fruto de uma violência interna da cobrança social do fazer mais que foi internalizada em nossos corações.

Sofremos porque a cobrança por esse estilo de vida produtivo parte de nós mesmos. Ficamos ansiosos porque acordamos com uma lista de afazeres que não desaparece enquanto não dormimos pra esquecer que ela existe. Quando terminamos uma parte, parece que ganhamos o Hexa! Só nos satisfaz aquilo que sabemos que foi difícil de cumprir. Com a maior alegria, isso é um feito, uma vitória, uma conquista a ser adicionada em nosso histórico biográfico. Quem diria que até orar e ler a bíblia passou a ser um check que alivia a consciência no momento em que dizemos o Amém. Aliás, será que Deus vê o quanto de coisas fazemos por Ele? Ele deveria ser mais agradecido…

Por coincidência, este ano de pandemia foi meu primeiro ano do mestrado. Quanta coisa muda na gente quando entramos nessa fase. Acentuou em mim essa coisa de produzir cada vez mais como se a vida fosse um CV ou um Lattes a ser preenchido pelas tarefas que nos propomos a fazer.

Aproveitei. Produzi muito, na minha opinião. Escrevi como nunca na vida, participei de tantos eventos que não fosse os certificados iria esquecer de metade. Como foi tudo remoto, fiz o que não conseguiria fazer em outro cenário sem pandemia. No entanto, como escrevi anteriormente, a pandemia serviu como um professor que leciona sem palavras sobre encarar a pequenez humana e admitir a fragilidade de nossos grandiosos projetos.

Confesso, tive de me arrepender. Afinal, do que serviria tamanho esforço para produção se, no final das contas, o mais legal da vida não dá pra por no Lattes? Mas confesso de novo, continuei a produzir. Como eu disse, se trata de um paradoxo, porque apagar qualquer um dos dois lados da moeda é invalidar o seu valor.

Eu sei. Pessoas não tolas como eu já fizeram essa reflexão antes. Mas no momento em que vivemos, a pandemia nos trouxe um avivamento da ordinariedade. Aprendemos a valorizar os momentos simples debaixo do sol. E isso nem Salomão em sua sabedoria poderia prever. Mais do que nunca, nos vimos dentro deste paradoxo: vivemos como quem está compondo um grande currículo para publicar no LinkedIn da história humana, mas com o desejo profundo de viver uma vida digna de ser vivida e, no máximo, narrada para meia dúzia de netos que serão o melhor (e único) público interessado em nossa biografia. Porém, traímos nosso desejo com nossa inescapável forma de vida. Quem poderá nos salvar dessa miséria?

O outro lado da moeda: o que está fora de nosso alcance produtivo

Aprendi algumas coisas muito importantes com o Rubem Alves esse ano, principalmente num livrinho sobre educação, que mais parecia uma conversa da cabeça dele materializada em livro — aliás, que capacidade de escrever bem o que pensa. Apesar de grande acadêmico, (doutor em Princeton em teologia) e apesar de grande educador (reconhecido assim nas melhores universidades do Brasil), desafiou a validade de seu currículo quando preferiu escrever sobre o que mais importava a ele. Parecia pra ele que faltava amor dentro na busca implacável da vida acadêmica por produtividade. Faltava o olhar que colocava na balança aquilo que está fora de nosso alcance de produzir.

E não é assim que a gente se sente? Meio descolado da boa vida, meio arrependidos de gastar tudo em coisas sem valor, tipo comprar uma maçaneta de ouro pra uma porta quebrada. Intuitivamente sabemos que a forma de vida que levamos como sociedade é insuficiente. É aquela sensação de olhar para um troféu e lembrar que aquele campeonato já nem existe mais e só era importante pra mostrar pra gente mesmo que éramos capazes de alguma coisa.

Mas antes do Rubem Alves, outra pessoa já tinha percebido o mesmo (e creio eu que por um motivo mais sublime). Estou falando do apóstolo Paulo, o homem que disse:

Se alguém pensa que tem razões para confiar na carne, eu ainda mais: circuncidado no oitavo dia de vida, pertencente ao povo de Israel, à tribo de Benjamim, verdadeiro hebreu; quanto à lei, fariseu; quanto ao zelo, perseguidor da igreja; quanto à justiça que há na lei, irrepreensível. Mas o que para mim era lucro, passei a considerar perda, por causa de Cristo. Mais do que isso, considero tudo como perda, comparado com a suprema grandeza do conhecimento de Cristo Jesus, meu Senhor, por cuja causa perdi todas as coisas. Eu as considero como esterco para poder ganhar a Cristo. Filipenses 3:4–8

Ele captou o que eu penosamente estou tentando dizer. Ele entendeu que ter uma grande lista de grandes feitos não era o mesmo que ter uma boa vida. Nossa vantagem (desvantajosa) é que compreendemos esse princípio de forma bem escancarada na pandemia, pois quando o mundo parou por conta do vírus, nos demos conta que nosso ritmo sem pausas era só um disfarce mal feito para nossa alma inquieta. Mas isso não é tudo.

Reconhecer o valor das coisas que estão fora de nosso alcance produtivo depende de outro ponto de referência

Quando o assunto sobre o problema da produtividade e busca por conquistas sociais paira sobre a internet, sobretudo movido pelo anseio de uma vida plena, o remédio costuma ser mais ou menos como se segue: "faça menos, faça melhor." Mas estou a ponto de discordar diametralmente de toda essa ilusão.

Tentando um realismo, mas não deixando de ser esperançoso, o que precisamos quando nos damos conta desse paradoxo que falamos até aqui é de trocar nosso ponto de referência, e não mudar, necessariamente, nossa forma de vida. Citei ali uma tentativa de ser realista porque, no final do dia teremos de ter atividades checkadas para prestar contas ao nosso chefe, ou boas notas no histórico escolar para passar num próximo desafio acadêmico, ou, mais fundamentalmente, precisaremos ter feito nosso trabalho pra receber o salário e ter do que continuar a vida. Mas também citei a esperança, porque há limites em que nossa forma de vida atarefada pode chegar antes que nos mate. A esperança aqui seria o motor da mudança para a sustentabilidade.

Isto é, lidamos novamente com o mesmo paradoxo, mas como quem quer saber o que fazer após tê-lo descoberto. Assim, mesmo realistas por sabermos que precisaremos manter um bom ritmo de produtividade, precisamos da esperança de que, tão logo que bater a necessidade, iremos mudar um tanto aqui e ali para dar conta de uma vida que valha a pena ser vivida.

Vejo isso em nosso apóstolo. Paulo considerou como perda qualquer parte de seu currículo que poderia ser considerada como sinônimo de uma boa vida, mas ele não o fez parando de se dedicar com a devoção que fazia quando fariseu. O que mudou então? Creio que seu ponto de referência. O que antes era tudo, comparado a Jesus era nada. O que antes era lucro, reconhecimento, orgulho, depois de Jesus era gasto, vergonha e embaraço. O objeto de seus esforços já não era mais o que poderia ser feito para Deus, porque o que ele recebera graciosamente era, em todos os aspectos possíveis, melhor.

Então, entre a vida como currículo a ser preenchido e a boa vida que vale ser vivida, Paulo escolheu os dois, mas não da mesma forma que antes. Viveu o paradoxo. Mudou o objeto de seu coração. Trocou seu ponto de referência. Teve Jesus como aquilo no coração que vale a pena se apegar em detrimento de sua antiga vida. Pode ser que, no ritmo de vida, pouca coisa tenha mudado pra Paulo. Mas ao enfrentar com seus próprios olhos a luz estonteante da pessoa de Cristo, sua percepção acerca de tudo o mais fora alterada.

Isso não é novidade para ninguém. E nem desejo que seja, embora possa vir a ser para alguém. O ponto é que algumas coisas não podem ser postas no currículo, porque elas fogem à nossa tentativa de colocar tudo como produção nossa. A novidade é essa: me parece que só quando Jesus brilha sobre nós e caímos cegos de nossa vida atual é que conseguimos compreender o valor dessas coisas mais importantes. Mas também é preciso dizer: continuaremos a construir um currículo com nosso trabalho e não há inocência romântica que irá nos fazer esquecer disso — as segundas feiras estão aí pra isso. O que muda é que não teremos mais o mesmo objetivo, porque aprendemos que o que mais importa não foi produto de nossas mãos; é dádiva divina.

Esse ano aprendi muito. Dentre as coisas que quis compartilhar, o que escrevi acima saltou aos olhos. Afinal, o ano irá acabar, outro irá iniciar, porém, continuaremos vivendo paradoxalmente entre a produtividade e a boa vida. Porém, penso eu, sem precisar escolher um dos lados da moeda. Tão somente se o coração aprender repousar em Jesus

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Tiago Melo

Quase doutor em Ciências da Religião, autor do livro Neocalvinismo e teólogo nas horas vagas.